A massa é uma grandeza conservada?
Ao longo do tempo, no desenvolvimento da Física e da Química, energia e massa sempre foram consideradas grandezas de naturezas bem diferentes.
É claro que pode existir uma relação direta entre elas. Por exemplo, a energia cinética de um corpo com velocidade é
onde é a massa do corpo. Quanto maior a massa, maior a sua energia cinética.
No entanto, no que se refere às leis de conservação, energia e massa sempre foram consideradas separadamente até os primeiros anos do século XX.
No período do desenvolvimento da atomística, químicos como Antoine Lavoisier concluíram que a massa era uma quantidade conservada, ou seja, ela é mesma antes e depois de uma reação química. Nessas reações, átomos e moléculas originais interagem, criando novos átomos e moléculas. No entanto, verificava-se empiricamente que a massa total permanecia a mesma. É neste contexto histórico que foi enunciado o princípio da conservação da massa.
Atualmente, sabemos que nessas reações químicas e interações subatômicas, uma parcela da massa é convertida em outras formas de energia e vice-versa, ou seja, a massa não é uma grandeza conservada. No entanto, como a diferença de massa é uma insignificante parcela da massa total do sistema, balanças e outros equipamentos de laboratório da época não eram capazes de detectá-la.
Com os dados precisos disponíveis atualmente, podemos ter uma ideia da conversão de massa em energia fazendo alguns cálculos que envolvem núcleos atômicos simples. Como exemplo, vamos pegar o deutério, um isótopo do átomo de hidrogênio (possui o mesmo número de prótons do hidrogênio, que é um, mas diferentes números de nêutrons). Além do próton, que constitui o núcleo do hidrogênio, o núcleo do deutério (conhecido como dêuteron), possui também um nêutron, .
A massa do próton é e a do nêutron é , onde é a chamada unidade de massa atômica e equivale a kg.
Somando-se as massas do próton e nêutron, encontramos
Por outro lado, a massa do dêuteron é
Ou seja, a soma das massas dos constituintes do dêuteron é maior do que a massa do próprio dêuteron:
Afinal, para onde vai a diferença de massa? Poderíamos inferir que ela simplesmente desaparece e concluirmos que massa não é uma grandeza conservada em sistemas envolvendo partículas subatômicas.
No entanto, hoje sabemos que essa diferença se encontra na forma de energia de ligação que mantém coesos o próton e o nêutron no núcleo. Ou seja, uma parte da massa passa a se manifestar em forma de energia!
Igualmente fascinante é a massa do próprio próton. De acordo com o chamado modelo de pártons da física de partículas e da cromodinâmica quântica (QCD), o próton não é uma partícula fundamental. Ele é constituído por partículas supostamente fundamentais, os quarks. A distâncias muito pequenas, ele é um objeto bem mais complexo por conta da flutuação do vácuo da mecânica quântica, mas é bem fundamento que dois quarks chamados up (u) e chamado down (d) são os constituintes básicos. É espantoso saber que esses quarks juntos possuem massa total da ordem de 1% da massa do próton!
De onde vem 99% da massa do próton? Da energia de ligação, que no caso trata-se da chamada interação forte.
Para mais detalhes sobre Física das Partículas, sugerimos o site Dinâmica das Interações Fundamentais, da autoria do Prof. Felipe Ponciano de Novaes, acessível aos alunos do ensino médio.
Teoria da relatividade e a equivalência massa-energia
Conforme exemplos acima, é fato consumado que o princípio da conservação de massa, enunciado por Lavoisier e outros, falha. Afirmamos acima que a diferença de massa se transforma em energia de ligação. No entanto, é possível que massa possa se transformar em energia e vice-versa?
Em 1905, Albert Einstein apresentou a sua teoria da relatividade especial. Uma das predições dessa teoria é a famosa fórmula
que representa a equivalência entre massa e energia. é a velocidade da luz no vácuo e tem o valor exato 299.792.458 m/s ou aproximadamente m/s, e é uma das constantes físicas fundamentais.
Mediante essa equação, é possível que massa possa ser convertida em energia e energia possa ser convertida em massa. Assim, o princípio da conservação de energia continua válida, mas temos que acrescentar a massa como uma nova forma de energia.
Mas a pergunta é: como Einstein concluiu que ?
Vamos focar aqui apenas na equivalência entre massa e energia prevista pela Teoria da Relatividade Especial. Caso queira conhecer melhor a teoria de Einstein indicamos o site Relatividade Restrita, da autoria do Prof. Ricardo Vieira Pereira, que possui uma linguagem acessível a alunos do ensino médio.
No contexto da Mecânica Clássica, discutimos o teorema trabalho-energia cinética (para relembrar, clique no link Trabalho e Forças Conservativas). Relembrando, o trabalho realizado por uma força resultante sobre um corpo é igual a variação da energia cinética desse corpo, ou seja, .
Para uma partícula se deslocando em linha reta sob ação de uma força resultante variável ao longo do eixo , de para , tem-se que
onde escrevemos a segunda lei de Newton em termos da variação do momento linear, conforme discutido na página Momento linear e sua conservação.
Para dar conta dos efeitos relativísticos, a expressão do momento linear de uma partícula de massa é modificada para
onde é a velocidade da partícula em relação ao observador e
é o chamado fator de Lorentz.
Alguns atribuem a quantidade como sendo a massa relativística do objeto e simplesmente como massa de repouso. Contudo, atualmente essa nomenclatura é ultrapassada. Por massa, entendemos como sendo a quantidade , que é uma propriedade da partícula e portanto medida no seu referencial de repouso.
Por simplicidade, vamos tomar um movimento retilíneo e utilizar a relação escalar . Como é constante, temos que
Substituindo a expressão acima na integral e fazendo (já que ), temos uma integral na variável . Os limites vão de (partícula na posição ) a (partícula na posição ). Para simplificar, vamos tomar (portanto ) e . Então,
Reescrevendo a equação acima numa forma mais sugestiva,
onde identificamos o termo à esquerda como sendo a energia total da partícula:
Se , ou seja, a partícula se encontra em repouso, temos que
É daí que vem a famosa equação de Einstein; é identificada como sendo a energia de repouso de uma partícula de massa . O simples fato da partícula ter massa implica que ela tem energia, mesmo parada!
No limite não relativístico, é pequeno e portanto é muito menor do que 1. Nesse limite, podemos fazer uma aproximação para o fator de contração de Lorentz utilizando a expansão binomial com expoente negativo, já utilizada na seção Energia Potencial. Neste caso, como e , temos
Para , as potências e maiores podem ser ignoradas, pois possuem valores muito pequenos.
Substituindo a aproximação na equação da energia:
ou seja, recuperamos a equação clássica para a energia cinética: .
Podemos relacionar a energia total com o momento relacionando as equações
Devemos elevar as duas equações ao quadrado, em seguida multiplicar a equação do momento ao quadrado por e por fim subtrair de :
de forma que
Podemos fazer duas observações acerca da equação acima:
- Ela mostra que quando o objeto está em repouso, , e portanto a energia do sistema é . Nada de novo, pois este resultado já foi obtido acima.
- A equação permite calcular a energia para partículas que possuem massa nula. No caso, sabemos que o fóton , que é o quanta da onda eletromagnética, é uma partícula fundamental de massa nula. Para o fóton,
De acordo com a teoria da relatividade, como o fóton possui massa zero, não possui referencial de repouso. Logo, enquanto existir possuirá algum momento diferente de zero e portanto energia diferente de zero também.
Exemplo 1: o decaimento do nêutron
A partir da expressão relativística , onde a massa (multiplicada por ) é considerada energia, podemos entender o que ocorre com a massa quando ela não se conserva. No caso, vamos analisar o decaimento (desintegração) do nêutron livre (condição quando ele está fora de um núcleo atômico). Nesta condição, o nêutron decai segundo o processo
ou seja, ele desaparece e dá origem a um próton (), um elétron () e um antineutrino do elétron (). Para um maior conhecimento dessas partículas elementares e suas propriedades, sugerimos o site Dinâmica das Interações Fundamentais, criado pelo Prof. Felipe Ponciano de Novaes, que é bem acessível a alunos do ensino médio.
Vamos analisar a massa total antes e depois do decaimento. Para esta finalidade, vamos expressar as massas das partículas em unidade de eV/c, onde eV é a unidade conhecida como elétron-volts, onde 1 eV é aproximadamente igual a J. Temos que
onde MeV (leia-se mega elétron-volts) é eV.
Temos que MeV/c é maior do que a soma das massas do seu produto de decaimento, que dá MeV/c. O que ocorre com MeV/c?
Vamos supor que o nêutron se encontra em repouso. Neste caso, considerando-se que a energia total relativística se conserva no processo de decaimento, tem-se
Logo,
Ou seja, a diferença de massa vezes se transforma em energia cinética dos produtos de decaimento. De fato, experimentos mostram que o próton, o elétron e o antineutrino do elétron são materializados já em movimento.
Colisões Relativísticas
Assim como numa colisão clássica, o momento linear se conserva numa colisão relativística. No entanto, há três detalhes importantes a observar:
- O momento linear da partícula é dada pela Eq. (2)
- A energia total é sempre conservada numa colisão relativísitica. Na equação da conservação de energia, não se esquecer da Eq. (1). Massa é energia!
- Assim como na colisão clássica, quando a energia cinética total se conserva, estamos falando de uma colisão elástica.
Observa-se no entanto, que essa situação só ocorre quando a massa total se conservar. Basicamente, nessas colisões, as partículas que interagem permanecem as mesmas.
Vale lembrar também que as conservações do momento linear e da energia total ocorrem também em processos de decaimento.
Exemplo 2: o decaimento do píon
O píon (), ou méson pi, é uma partícula composta produzida na atmosfera a partir da interação dos raios cósmicos com a atmosfera da Terra.
Para ser mais exato, há três tipos de píons, cuja principal diferença entre eles é a carga elétrica: e , com cargas iguais a e , onde C é a carga elétrica fundamental.
Um , logo após ser produzido, decai quase que instantaneamente em um múon () e um neutrino do múon (), na grande maioria das vezes.
Se píon se encontra em repouso, qual a velocidade com que o múon é produzido?
Conforme visto acima, é totalmente razoável desprezarmos a massa do neutrino, pois tanto o píon como o múon possuem massas muito maiores: MeV/ e MeV/, enquanto é da ordem de 1 eV/, no máximo; lembrando que 1 mega (M) é igual a .
Pela conservação do momento linear,
Usando para a igualdade acima,
Pela conservação de energia, sabendo-se que o píon está em repouso:
Substituindo na penúltima equação acima,
Podemos determinar o módulo do momento linear do múon usando a relação energia-momento, :
Vamos escrever as equações (2) e (3), dadas acima, que são respectivamente
Dividindo a primeira pela segunda, obtemos
Utilizando os dados das massas do píon e do múon, obtemos .
Evidentemente, como consideramos , a sua velocidade será .
No exemplo 1, consideramos o decaimento do nêutron, dado pelo processo
Poderíamos ter usado as conservações de energia e momento linear nesse decaimento e obter a velocidade do próton?
Em princípio, sim. No entanto, esse é um processo que envolvem três corpos no estado final. Como há mais variáveis do que equações, a velocidade do próton, assim como a sua energia, não possui um valor único. Se conhecermos os detalhes da interação entre as partículas, podemos determinar o espectro de energia do próton advindo do nêutron.